duas cadeiras. Uma mesinha. alguns objetos numa caixa. as vozes de ella fitzgerald e louis armstrong escapam da caixa de som, flutuando entre a poeira de tantos anos. a cortina da “cena” é a mesma que existe na casa desde quando eu era bebê. mostra uma foto onde aparece a cortina.
meu quarto fica aqui. o dela, ali. tão perto. (reconstitui os passos do seu quarto até o da mãe, hesitando um pouco, como se os pés ainda reconhecessem o chão) pertíssimo. tão perto e, ao mesmo tempo, longe demais agora.
a minha casa é um “museu de grandes novidades”. (à medida que fala, retira objetos da caixa, um a um, como num ritual lento, quase solene.)
este espremedor elétrico de laranjas não vê uma laranja há três décadas. na última vez que viu, foi um suco para acalmar a febre do meu pai.
este porta-gelo já testemunhou muitas doses de uísque nas festas familiares, aquelas noites em que mãínha ainda usava o batom vermelho que ficou anos guardado na penteadeira. às vezes, eu deslizava o dedo no estojo, curioso com o que fazia mãínha brilhar.
e este copo tuppeware? (ri, levantando o copo e olhando contra a luz.) ele tem a minha idade. aguentou quedas, vitaminas matinais e, um dia, foi a prisão temporária de um pássaro que entrou em casa e quebrou uma asa.
(silêncio breve, os objetos sobre a mesa agora.) tanta coisa muda e, ainda assim, tantas coisas insistem em ficar.
na mesa de cabeceira de mãínha:
fotos sépia do casamento
convite do casamento: novembro de 1968
lenços de tecido
sutiãs
meias-calças
camisinhas
bisnagas de pomada ginecológicas
resultados de exames laboratoriais